Dentre as famílias prósperas e importantes da vila de São Paulo, na primeira metade do século XVII, figuravam a dos Camargos e dos Pires. Embora interligadas por laços de parentesco e por interesses comuns voltados para as atividades rurais e em especial a produção de trigo, de que eram grandes produtores, eles eram desunidos politicamente. Disputavam a afirmação na vila e o comando da Câmara. Os Camargos e os Pires estiveram sempre em atritos, jamais conseguindo viver em paz e harmonia, confrontando-se na busca do poder. Como resultado ocorreu uma luta declarada entre eles nas décadas de 40 a 60.
Os Camargos descendiam do espanhol José Ortiz de Camargo, natural de Castela. Eles eram escravocratas, predadores de índios reduzidos no território das missões e inimigos dos jesuítas, por discordarem do emprego do trabalho escravo dos indígenas. Fernando de Camargo, “o Tigre”, primogênito de José de Camargo, projetou-se como juiz ordinário na câmara e como um dos responsáveis pela expulsão dos jesuítas da capitania. Os Camargos eram considerados de sangue quente, radicais e violentos.
O conflito começou no final de agosto de 1640 quando Pedro Taques de Almeida teve um desentendimento com Fernando de Camargo em pleno largo da matriz da vila de São Paulo, hoje largo da Sé.
Pedro Taques pertencia à família do patriarca do mesmo nome que chegara de Portugal no ano de 1591, na comitiva do governador geral, D. Francisco de Souza. Ele não tinha Pires no nome, mas se aparentava e se alinhava com essa família. Foi casado com Potência Leme, irmã de Fernão Dias Pais, portanto descendentes das duas famílias: Taques e Leme, ambas originarias da região de Flandres, na Bélgica.
No início do conflito os contendores desembainharam as espadas e adagas e com ofensas e ameaças entraram em luta corporal, travaram uma briga renhida envolvendo partidários de ambos os lados. Da porta da igreja os brigões foram se digladiando por várias ruas ao redor, resultando em algumas mortes e muitas pessoas feridas. Os dois contendores saíram ilesos e se declararam-se inimigos, tendo apoio de parentes, aliados e capangas sob os seus comandos. A vingança e o ódio passaram a dominar na relação entre ambos. A vila entrou em polvorosa.
No ano seguinte, em 1641, no mesmo local anterior, Pedro Taques estando em conversação com um amigo o seu opositor Fernando de Camargo, enfiou-lhe uma facada pelas costas, tirando-lhe a vida. O crime provocou a continuidade do conflito por mais de duas décadas, envolvendo várias gerações e levando o medo e o pavor entre os habitantes da vila e por vezes para além de suas fronteiras.
Na década seguinte novo e sangrento episódio veio a reacender o conflito entre as duas famílias.
Em 1650 Alberto Pires, que havia tomado como esposa Leonor de Camargo Cabral, oriunda da família opositora, estando em sua fazenda, por uma fatalidade não muito bem esclarecida acabou por agredir e matar sua esposa. Temendo as consequências mandou chamar o cunhado Pedro de Barros, que era casado com sua irmã Maria Pires, e numa emboscada também o matou. Seu plano era de acusá-los da prática do adultério. Diante dos corpos inertes e com base na defesa da honra sua versão foi aceita por seus parentes.
A mesma aceitação não ocorreu com os parentes da vítima, os poderosos Barros e Camargos, que buscaram a vingança.
Alberto, perseguido, procurou refúgio na casa de sua mãe D. Inês Monteiro, rica e poderosa matriarca, viúva que havia sido casada com Salvador Pires. Após a decisiva intervenção da respeitada matrona, a vida do filho foi poupada para ser julgado pela Justiça do Reino. Assim Alberto foi detido e levado para ser julgado na Bahia. Em uma escala da comitiva em Ilha Grande próximo a Angra dos Reis, temendo a intervenção de D. Inês, os membros da guarda acabaram por matar Alberto Pires e seu corpo foi jogado no mar.
A partir de então a vila de São Paulo e seus arredores foi tomada por uma guerra civil repleta de episódios sangrentos, lutas aguerridas e mortes de ambos os lados, com grande repercussão na vila e na capitania de São Vicente. O pavor tomou conta de seus habitantes que passaram a procurar refúgio em lugares mais seguros, ocasionando a dispersão de muitos para novos locais que iam se formando fora do território da vila.
O conflito transcendia a ordem pessoal e familiar e se manifestou no controle das instituições da vila. A sucessão dos eleitos deixou de se fazer de forma pacífica. A Câmara por muitas vezes não se reuniu por causa dos tumultos e ameaças.
Somente em 1655, com a intervenção do governador geral da Bahia, Jerônimo de Ataíde, foi realizado acordo para por fim ao conflito. Os cargos da Câmara passaram a serem repartidos igualmente entre as duas facções e foi concedida a anistia geral aos culpados por crimes. Novo acordo foi firmado em 1660, proporcionando uma trégua à guerra entre os Pires e os Camargos. O apaziguamento se fez com a deposição das armas e a promessa de trabalharem pela melhoria do local.
A vila, após anos de destruição e dispersão de sua população, voltou a sua vida pacata e seus habitantes retomavam seus planos de adentrar aos sertões em busca de metais preciosos e da caça aos indígenas.
Para saber mais:
Costume entre os Camargos, Paulistas. e Guaracy de Castro Nogueira. In: http://www.asbrap.org.br/documentos/revistas/rev6_art12.pdf