#tempodemovimento | Parte IV – Manifestações artísticas e religiosas | O catolicismo paulista

O catolicismo praticado no planalto paulista foi fruto da miscigenação e das condições de vida dos primeiros povoadores.

Como resultado teve início o despertar de uma religião híbrida e popular, influenciada por diversos grupos humanos formadores da sociedade paulista, apresentando peculiaridades próprias que a distinguem do catolicismo rígido e dogmático praticado no reino português.

Um catolicismo que se desenvolveu com feições próprias, diferentes em muitos aspectos daquele praticado na região açucareira e demais regiões da colônia brasileira.  Era portador de características que o identificavam como ser predominantemente laico, voltado para o culto dos santos e fundação de capelas, de caráter privado, de âmbito familiar e festivo.

O catolicismo laico

A Vila de São Paulo, ao longo do século de sua fundação, era desclericada. Só teve vigário em 1591.  A partir de então a Capitania de São Vicente passou a contar com quatro vigarias localizadas em São Vicente, Santos, Itanhaem e em São Paulo.

A presença de leigos em geral no âmbito religioso se deu, entre outros fatores, pela forma de ocupação do território interiorano que não contou com a presença e influência do clero regular.  Esta situação perdurou por mais de cinquenta anos do período de formação da capitania de São Vicente,   influenciado pelo número reduzido de sacerdotes, a grande extensão do território a ser colonizado, bem como porque em parte a Coroa Portuguesa já pagava elevadas somas de dinheiro aos jesuítas e assim não estava interessada em aumentar as despesas numa capitania donatarial.  Mesmo com a criação do bispado da Bahia em 1551, que melhorou e fortaleceu a organização da Igreja Católica no Brasil, a vila de São Paulo só conseguiu ter um pároco e dar início à construção de sua Igreja matriz no início da década de 90 dos anos quinhentos.  Os habitantes tiveram que se contentar com os poucos padres da Companhia de Jesus.  Porém, “pelos conflitos nesse período entre os jesuítas e os colonos, é óbvio que os padres da Companhia não desempenharam um papel religioso de relevo na vida da população branca… toda a vida religiosa da capitania se passava à margem da Companhia de Jesus.” (Silva, 2009, p.85)

O catolicismo de caráter privado, de âmbito familiar

Desde o início da capitania de São Vicente, como lembra o historiador Marcelo Bogaciovas, era visível e importante o papel desempenhado pelas mulheres na transmissão da cultura e da religião.  No Brasil colônia como afirma: “É sabido que é a mulher que, preferencialmente, transmite a religião judaica para seus filhos, obviamente que no âmago do lar.” (Bogaciovas, 2015, p.85)

  O lar colonial firmar-se-ia como o ambiente propício para a continuidade da religião, da fé e devoção familiar. No caso de São Paulo, a atividade de caça ao índio e busca de riquezas minerais causavam frequentemente a ausência dos chefes de família, conferindo maiores obrigações às mulheres.   Assim, tanto as cristãs velhas ou novas se tornaram desta forma responsáveis pela administração dos bens, do funcionamento da casa, pelo zelo na criação dos filhos e liderança nos grupos de trabalhadores e agregados ao seu grupo familiar.  No espaço possível do lar eram vivenciadas e transmitidas as tradições religiosas.  Com ênfase para as práticas às escondidas em que a mulher judia que, preferencialmente, transmite a religião judaica, ia “moldando a orientação religiosa dos filhos, servindo de liame entre os componentes do clã Lar-escola-sinagoga: as residências incorporavam em seu espaço o tripé da tradição judaica. Espaço multifuncional onde a mulher exerceria conjuntamente as tarefas de provedora, mãe, educadora, catequista e rabi.”  (Angelo Adriano Faria de Assis, in Bocaciovas, p. 85)   Não foram poucas as denúncias ao Tribunal da Inquisição sobre as mulheres cristãs novas que praticavam sinagoga em seus lares.

Apesar da perseguição e desconfiança sofrida, o culto judaico continuou a ser preservado e praticado.  Entre estes costumes estavam: guardar o sábado e nele usar roupas limpas; não comer toucinho, nem coelho, nem peixes com pele ou couro; observar o jejum de Kipur, e o da Rainha Éster; orar de certo modo; banhar defuntos; jogar fora a água de casa quando do falecimento de alguém, formas próprias de benzer os filhos e ser enterrado em solo virgem.  Desse modo, o judaísmo possível ficou em boa parte adaptado a práticas domiciliares.  As residências se tornaram o núcleo principal de manutenção e irradiação da fé e de práticas religiosas judaicas.  Desta forma, “impedidos de denunciar suas preferências religiosas, e procurando driblar as ameaçadoras desconfianças da sociedade, os criptojudeus ver-se-iam obrigados a trocar a desejada profissão pública de fé por um judaísmo construído nos pequenos detalhes, limitados aos seus conhecedores: substituía assim, as circuncisões pelas orações e vigílias domiciliares, festa como o Ano Novo ou o Pentecostes pelos jejuns, etc.” (Assis, 2008, p. 7)

Estes costumes acabavam por influenciar as pessoas que viviam junto às famílias judiais ou eram de alguma forma por elas influenciadas, no contexto de uma circularidade cultural.    Em interessante ensaio sobre “a influência dos marranos no sertão das cutias” o professor e jornalista Judas Tadeu de Campos demonstra a existência de sinais destas influências na religiosidade popular no Vale do Paraíba em território paulista. Como resultado teve início o despertar de uma religião híbrida e popular, influenciada pelos diversos grupos formadores da sociedade paulista com peculiaridades próprias que a distingue do catolicismo rígido e dogmático praticado no reino português.