13 de março de 2018
Durante o ano de 2017 foi desenvolvido uma extensa e cuidadosa programação religiosa e profana promovida pela Igreja Católica, por intermédio da Arquidiocese de Aparecida, para celebrar o encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida nas águas do rio Paraíba do Sul. O culto e devoção a “Aparecida” se estende por mais de três séculos, atraindo nos dias atuais para o local milhares e milhares de peregrinos e devotos da “Rainha e Padroeira do Brasil”. Um acontecimento repleto de simbolismo, mistério e identidade.
A Igreja Católica toma como base para a comemoração do encontro da imagem no ano de 1717 a narrativa escrita pelo Pe. Dr. João de Morais e Aguiar, mestre em Teologia Moral e pároco de Guarantinguetá, escrito quatro décadas depois, no ano de 1757. É este o documento oficial, utilizado pela Igreja para elucidar o achado da imagem e o início do culto e devoção. O Pe. Aguiar menciona em seu texto o ano, os acontecimentos da época, a passagem do Conde Assumar pelas terras de Guaratinguetá e o nome dos três pescadores participantes da “pesca milagrosa” no rio Paraíba do Sul. Nesse sentido tem-se dado grande ênfase à participação destes homens, ao significado da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e do rio Paraíba com suas águas como fonte de purificação.
O citado documento relata ainda a ocorrência de dois fatos milagrosos ocorridos após quinze anos “pouco mais ou menos” do “achado milagroso” da imagem em 1717.
O primeiro aconteceu em um sábado, quando no cantar do terço as duas luzes de cera da terra que alumiavam a imagem da senhora “Aparecida” se apagaram repentinamente, para novamente se acenderem sem nenhuma intervenção humana. Em outra semelhante ocasião, os participantes das orações viram muitos tremores no nicho e no altar e as luzes novamente ficaram trêmulas, mesmo estando a noite serena.
O segundo fato considerado milagroso ocorreu em uma noite de sexta-feira para sábado quando foi ouvido um grande estrondo dentro da caixa ou baú velho onde se encontrava a imagem da santa. Sem encontrar explicação plausível para os fenômenos eles foram registrados e considerados como os primeiros dos milagres atribuídos à “santa Aparecida”.
Esses prodígios ocorreram durante as reuniões realizadas para cantarem o terço e manifestarem a devoção a “Senhora Aparecida”, estando à frente uma das moradoras do local, Silvana da Rocha. Nada mais se diz a respeito e nada se sabe sobre ela. O texto, com base em fonte oral, cita “Mãe Silvana”, a que tinha a guarda da imagem e que reunia a família, juntava a vizinhança, como era costume na época, para contarem o terço e fazer as devoções.
“Mãe Silvana” faz parte da legião de leigos que durante o período colonial vivenciaram a sua maneira a religiosidade católica, criaram e recriaram suas experiências, reatualizando práticas religiosas marcadas pelo sagrado e pelo profano. Um catolicismo caracterizado pela manutenção da herança cultural do passado colonial português com seu pensamento mágico e a exterioridade das manifestações religiosas e de devoção. Um catolicismo predominantemente laico, gozando de certa autonomia, com muitas rezas e poucos padres e poucas missas, mais voltado para o ambiente privado e ao culto familiar aos santos de devoção. Como resultado ocorreu a formação de um catolicismo de feitio popular, privado e familiar. Uma religião que na sua prática estimulou a participação dos leigos e das mulheres em geral. Era “Mãe Silvana”, como revela o documento, que tinha a guarda da imagem e reunia os moradores do local para as rezas e culto à imagem.
Isto era muito comum no cotidiano religioso da população colonial brasileira. Nele se apresentava, para além dos agentes principais ligadas à estrutura da Igreja Católica, uma variedade de práticas e representações religiosas, com características próprias. Um “outro catolicismo”, cuja riqueza e variedade de manifestações estavam em permanente adaptação às circunstâncias aqui encontradas. Daí resultarem as denominações reconhecidas na historiografia brasileira como: “catolicismo guerreiro”, catolicismo patriarcal”, “catolicismo rústico”, “catolicismo mineiro”, e como pude compreender, um “catolicismo paulista.” São formas exteriorizadas das práticas religiosas que, ao mesmo tempo, aproxima ricos e pobres, os familiares, homens livres e escravos e uma variedade enorme de indivíduos de procedências e portadores de herança cultural bem diversos. Portanto de cunho laico, popular, no qual se pode localizar a gênese da devoção à Nossa Senhora Aparecida.
O lar colonial firmar-se-ia como o ambiente propício para a continuidade da religião, da fé e devoção familiar. No caso de São Paulo e do Vale do Paraíba, em especial, a atividade de caça ao índio e busca de riquezas minerais causava frequentemente a ausência dos chefes de família, conferindo maiores obrigações às mulheres. Assim, tanto as cristãs velhas ou novas se tornaram desta forma responsáveis pela administração dos bens, do funcionamento da casa, pelo zelo por seu grupo familiar, pela criação dos filhos e liderança nos grupos de trabalhadores e agregados que viviam ao redor de suas propriedades. No espaço possível do lar eram as mulheres que assumiam também as tarefa de manter e transmitir às novas gerações as tradições, os cultos e as orações dos santos de devoção. As mais variadas práticas religiosas estimularam a formação de um catolicismo marcado por atributos de originalidade, de autenticidade, de resistência ou oposição a um catolicismo do colonizador branco de origem europeia. Um catolicismo como representação. Uma religiosidade crescente manifestada nas concepções e práticas religiosas, simples, singelas, com palavras e gestos próprios. Uma religiosidade popular, com rosto de mulher, como o de Silvana da Rocha.
Tempos depois, passado mais de 27 anos do citado aparecimento da imagem, contando com o crescimento da devoção e com a presença de peregrinos que vinham de muitos outros lugares para manifestar sua fé na santa “Aparecida” a Igreja, por iniciativa do Pe. José Alves Vilella, pároco de Guaratinguetá, tratou de oficializar o culto. Para tanto solicitou das autoridades eclesiásticas a autorização para edificar uma capela que foi construída e inaugurada no ano de 1745. Neste tempo foi importante a atuação de Margarida Nunes Rangel, a doadora principal das terras onde foi edificado o templo. Ela era neta do Capitão Mateus Leme do Prado e de sua mulher Beatriz Barbosa do Rego. Fazia parte do importante tronco dos Leme, família notabilizada pela sua atuação no planalto paulista como bandeirantes, fundadores de cidades, como Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Campinas, Curitiba e Porto Alegre e tantas outras em território mineiro, ocupantes de cargos de prestígio na administração colonial em solo paulista. Margarida doou o Morro dos Coqueiros onde foi construída a capela por seu genro Capitão Antônio Raposo Leme, morador que era “na paragem da santa”. A capela primitiva foi construída onde hoje está situada a Basílica Velha. Além dela, outros membros desta família contribuíram com doações para formar o patrimônio inicial da capela. Foram eles: Lourenço de Sá, casado com uma bisneta de Brás Esteves Leme; Domingos da Costa Paiva, filho de Faustino Leme; e a quarta gleba, o “morro das pitas” foi doado pelo casal Jerônimo de Ornelas Menezes e Vasconcelos e Lucrecia Leme Barbosa, cuja doação foi assinada em 1752, na vila de Campos de Viamão, atual Porto Alegre, por eles fundada. Nestas terras se eleva a Basílica Nacional de Aparecida e o centro da cidade de Aparecida.
A história de Nossa Senhora Aparecida, como se pode observar, contou em seu início com a importante presença e participação das mulheres. Quer de Silvana da Rocha, que na condução da devoção, na prática das orações e representações religiosas contribuiu para o fortalecimento do culto e sua divulgação, bem como, com os esforços realizados pela devota Margarida Rangel para a concretização material da devoção por meio da construção da capela que permitiu a oficialização do culto. Elas representam respectivamente os habitantes mais humildes e os membros da família mais importante na época nestas terras pertencentes à vila de Guaratinguetá. São fatos que servem para exemplificar e testemunhar a presença e o significado da participação das mulheres no contexto da religiosidade paulista no período colonial.
Acredito ser importante que durante as celebrações em curso e para o futuro os responsáveis pela organização dos eventos continuem a destacar o “encontro da imagem” pelos pescadores e passem a dar destaque também à participação e à importância destas pioneiras na consolidação da devoção e do culto à “Mãe Aparecida”.